12.4.10

Diante da Lei

Diante da lei está um guarda-portão. Um homem do campo dirige-se a este guarda-portão e pede para entrar na Lei. Mas o guarda-portão diz que, agora, não o pode deixar entrar. Então o homem reflecte e pergunta se, portanto, lhe será permitido entrar mais tarde. “É possível” diz o guarda-portão, “mas agora não”. Como o portão que dá acesso à Lei está aberto como sempre e o guarda-portão se coloca ao lado, o homem curva-se para, através do portão, olhar para o interior. Quando o guarda-portão dá por isso, ri-se e diz: “Se te sentes tão atraído, tenta então entrar apesar da minha proibição. Mas nota: sou poderoso. E sou apenas o ínfimo dos guarda-portões. De sala em sala, porém, há guarda-portões cada vez mais poderosos. Nem sequer eu posso suportar a mera contemplação do terceiro.” O homem do campo não estava à espera deste tipo de dificuldades, a Lei deve, pois, pensa ele, ser acessível a qualquer pessoa e sempre que esta quiser, mas quando agora observa com cuidado o guarda-portão, com o seu casaco de peles, o grande nariz pontiagudo, a longa barba fina, negra e tártara, decide, apesar de tudo, que é preferível esperar até que receba a autorização para entrar. O guarda-portão dá-lhe um escabelo e deixa-o sentar-se ao lado da porta. Permanece sentado aí durante dias e anos a fio. Faz muitas tentativas para ser admitido e cansa o guarda-portão com os seus pedidos. O guarda-portão coloca-lhe frequentemente pequenas questões, faz-lhe perguntas sobre a sua terra natal e sobre muitas outras coisas, contudo, são perguntas desinteressadas como as que são feitas por pessoas importantes e, por fim, diz-lhe sempre que ainda não o pode deixar entrar. O homem que se equipou profusamente para a sua viagem, utiliza tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda-portão. Este, de facto, aceita tudo, no entanto comenta: “Só o aceito para que não penses que descuidaste alguma coisa.” Durante muitos anos, o homem observa o guarda-portão quase ininterruptamente. Esquece-se de outros guarda-portões e este primeiro parece-lhe ser o último obstáculo para a entrada na Lei. Nos primeiros anos, amaldiçoa o infeliz acaso em voz alta, mais tarde, quando vai envelhecendo, limita-se apenas a resmungar entre dentes. Torna-se infantil, e, como ao fim de tanto estudar o guarda-portão durante anos lhe conhece até as pulgas da gola do seu casaco de peles, pede também a estas para o ajudarem e fazerem com que o porteiro mude de opinião. Por fim, a sua vista torna-se fraca e não sabe se está realmente a escurecer à sua volta ou se são apenas os olhos que o estão a iludir. Contudo, reconhece agora na escuridão um brilho que irrompe da porta da Lei de uma forma indelével. Agora, já não tem muito tempo de vida. Antes da sua morte, acumulam-se na sua cabeça as experiências de todo o tempo em redor de uma única pergunta que até agora não fez ao guarda-portão. Faz-lhe sinal porque não pode endireitar o seu corpo entorpecido. O guarda-portão tem que curvar-se profundamente para ele, pois a diferença das estaturas alterou-se em desfavor do homem. “O que queres saber ainda mais”, pergunta o guarda-portão, “és insaciável.” “É que toda a gente aspira à Lei”, diz o homem, “como se compreende que em todos estes anos ninguém, a não ser eu, tenha pedido para entrar.” O guarda-portão reconhece que o homem se encontra à beira do fim e, para alcançar ainda o seu ouvido a perecer, grita-lhe: “Aqui, ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava-te destinada apenas a ti. Agora, vou-me embora e fecho-a”.

Franz Kafka, Der Process


Eu acho que é isso que o tribunal quer que eu pense. Sim, essa é a conspiração: convencer-nos a todos de que o mundo enlouqueceu, disforme, insignificante, absurdo. O esquema sujo é esse. Pois perdi o meu caso. E daí? Tu, também tu o estás a perder. Está tudo perdido, tudo. Mas isso importa? Será que sentencia todo o mundo à loucura?

Josef K., segundo Orson Welles (1963).

Sem comentários: